segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

O meu castigo



Estou de castigo. Esta noite fiquei muito excitado e lambi um pacote de manteiga. Foi uma pequena transgressão, porque só havia um restinho. Ainda pensei ir buscar umas tostas à cozinha, mas a manteiguinha que sobrava, coitada, não dava para barrar duas decentemente, mesmo que eu a espalhasse bem com a minha língua.

O meu mordomo e a minha menina não percebem que, para cão, eu estou a entrar naquela idade em que só não me reformo porque o Governo agora precisa que a gente trabalhe a vida inteira para pagar o novo aeroporto. Pensam eles que ainda sou um miúdo de sete anos e continuam decididos a educar-me. Claro que já adquiri muitos direitos importantes, como às cascas de queijo ou a lamber tigelinhas de mousse de chocolate que eles me dão. Mas quando sou eu a tomar a iniciativa, como hoje, é certo que vou passar umas horas trancado na casa de banho.

Eu violo as regras com tanta decisão que entro sempre no castigo de peito feito. Mas hoje estou quase a chorar porque eles não valorizaram relevantes atenuantes ao meu comportamento criminoso. É que o meu mordomo chegou a casa e ficou à espera de não sei o quê na televisão. Reparei logo, porque é raro ele pôr-se de comando na mão a olhar para o relógio. Depois, quando o programa começou, percebi tudo.

Ele queira ver o senhor alegre. Eu não percebo nada de política mas gosto do senhor alegre porque ele escreveu um livro sobre um cão meu amigo chamado Kurika. O Kurika morreu e o senhor alegre ficou cheio de saudades e escreveu um livro muito bonito, chamado "Cão como nós", que o meu mordomo me deixou ler ao mesmo tempo que ele, privilégio raro porque o meu mordomo tem muito medo que eu aprenda mais do que ele nos livros.

Claro que, faz agora dois anos, fiquei irritado com o senhor alegre quando o meu mordomo me abandonou quinze dias em casa para andar atrás dele a fazer reportagens de uma campanha política. Mas já me passou. E hoje gostei muito dos desenhos que mostraram na televisão do novo livro dele. Fiquei muito excitado. Por isso, subiu-me uma fúria quando o mordomo e a menina saíram para jantar e não me levaram. Eles ainda me disseram que me passeavam depois. Mas eu queria espalhar logo a minha alegria pelos cantos do bairro.

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